Arbitragem marítima, soberania estatal e comércio internacional

Arbitragem marítima, soberania estatal e comércio internacional

O espaço marítimo não é, como bem sabemos, apenas um meio de transporte, mas a representação do comércio internacional por excelência, na medida em que é pela via marítima que mais de noventa por cento das cargas trafegam por todo o globo. A intensificação do comércio internacional leva, evidentemente, à expansão do transporte marítimo transnacional e, portanto, é marca notável do processo de globalização como nenhuma outra encontrada em qualquer das esferas das atividades humanas.

Como meio mais relevante para o estabelecimento de intercâmbio transnacional, o transporte marítimo também é sinal de interconexão e, por fim, de interdependência entre entes soberanos que veem-se ante conflitos potenciais e, por vezes, efetivos.

Nesse cenário em que as economias são interconectadas e interdependentes, a afirmação de uma soberania absoluta contribui negativamente tanto prática quanto teoricamente para a própria preservação de âmbitos de eficiente ação dos estados nacionais. Na medida em que todo poder é sabidamente relativo, isto é, precisamente porque todo poder decorre de uma relação, o poder soberano só tem sentido de modo relacional, relativamente, portanto, a uma situação objetiva e subjetivamente determinada.

A sobrevivência da forma estatal de manifestação do poder político, assim, depende dos modos pelos quais se articulem soberanias estatais e autonomias privadas, trazendo a necessária transformação do direito, a linguagem por excelência do poder, em um direito reflexivo, isto é, num direito que prime pelo estabelecimento de relações coordenadas e não subordinadas através da comunicação com linguagens de outras esferas do saber e do poder.

A soberania estatal, então, há de ser exercida de maneira que as manifestações jurídicas consuetudinárias não sejam vistas como ameaças ao direito estatutário, mas como salvação de sua legitimidade na medida em que atuem como modos de integração em esferas para as quais o direito estatutário não se mostra eficiente dada a complexidade, dinamicidade e especificidade de agentes e atividades em certos campos.

Aqui falamos especificamente da relação entre os usos e costumes do comércio internacional (“lex mercatoria”) e de transporte marítimo internacional (“lex marítima”) com a legislações nacionais. Permanecer na linha do velho discurso de uma legislação nacional fundada na absoluta soberania externa e interna, caracterizada pela exclusividade e superioridade, no sentido de um discurso normativo completo e coerente, capaz de prever todas as situações prováveis e oferecer todas as soluções possíveis sem abertura para outros discursos normativos concorrentes é a fórmula para o fracasso e não para o sucesso.

Surge, então, a arbitragem como instrumental apto para atender aos reclamos de ordenação do comércio internacional, notadamente por via preferencial, pela via marítima, resolvendo mais do que litígios, mas, em verdade, os conflitos, visto que, na esfera da produção da decisão judicial a finalidade é de superar o conflito e não resolver o conflito. Segundo o programa decisório judicial, o conflito merece tratamento para que seja delimitado nos termos da admissibilidade estatal. O conflito, para o programa decisório estatal, há de ser colocado dentro de limites, em termos para além dos quais o conflito é social, mas não jurídico, é conflito, mas não é litígio.

O programa decisório arbitral é diverso. A decisão arbitral não é operação de enquadramento do conflito na moldura do norma, de cima para baixo, como na decisão judicial, mas é a construção por meio da qual os elementos do caso são utilizados na definição da melhor solução normativa conforme a especificidade da situação, de baixo para cima, portanto. Nessa linha, relevante é a questão do controle da decisão arbitral pelo juízo estatal que se dá, basicamente, nos diversos sistemas, pelo apelo retórico à denominada ordem pública.

Ordem pública, expressão caracterizada pela indeterminação do termo e pela imprecisão do conceito, serve de instrumento retórico para afirmação de soberanias estatais sobre as autonomias privadas, mas, na verdade, nada ou quase nada diz, podendo reputar-se como princípios de natureza política, moral ou até econômica em que se baseia um dado ordenamento jurídico e, bem por isso, não é coincidente necessária e forçosamente com uma ordem pública nacional, sendo admissível, como de fato vem sendo propugnado, que haveria uma ordem pública multinacional, resultante do conjunto de princípios de ordenações nacionais e, até, uma transnacional, resultante de um sistema de princípios gerais de ordenações nacionais e de ordenações internacionais, em especial, mas não apenas, as de caráter consuetudinário.

A arbitragem marítima, como método de resolução altamente especializada de conflitos entre agentes e entes de bandeiras diversas através da construção de decisões adequadas conforme os preceitos de uma ordem jurídica com vocação transnacional, contribui para a harmonização das relações entre governos e para a normalização das negociações entre empresas, criando padrões aptos a servirem de ponte entre comportamentos possíveis e condutas aceitáveis.

Referências:

TURA. Marco Antônio Ribeiro. Soberania estatal e classes sociais. Alfa Omega, 2009.

MENDES, Rodrigo Octávio Broglia. Arbitragem, lex mercatoria e direito estatal: uma análise dos conflitos ortogonais no direito transnacional. Quartier Latin, 2010.

GAILLARD, Emmanuel. Teoria jurídica da arbitragem internacional. Atlas, 2014.

PINHEIRO, Luís de Lima. Arbitragem transnacional: a determinação do estatuto da arbitragem. Almedina, 2005.

RAPOSO, Mário. Estudos sobre arbitragem comercial e direito marítimo. Almedina, 2006.

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